Quando falamos de comércio exterior no Brasil, muitas vezes olhamos só para câmbio, frete e alfândega. Mas, se lideramos logística, supply chain, finanças ou operações em grandes empresas, existe um “órgão invisível” que mexe diretamente em tarifas, defesa comercial, financiamento à exportação e ambiente regulatório: a Camex, Câmara de Comércio Exterior.
Nos últimos anos, a Camex foi redesenhada, ganhou novas competências e passou a atuar também em investimentos e facilitação de comércio. Isso não é detalhe jurídico: é variável de planejamento para quem decide CAPEX, sourcing global e estratégia de mercados.
A seguir, organizamos o tema com olhar de gestão, e não de manual jurídico.
O que é a Camex hoje
A Camex é o órgão do governo federal responsável por formular, coordenar e avaliar as políticas de comércio exterior do Brasil. Ela atua sobre bens e serviços, incluindo turismo, e integra o Conselho de Governo da Presidência da República.
Na prática, a Camex funciona como “hub” de política comercial: conecta ministérios (Economia/MDIC, Relações Exteriores, Agricultura, Fazenda, Planejamento etc.) e coordena decisões sobre tarifas, incentivos, defesa comercial, facilitação de comércio e investimentos.
Hoje, a Camex é disciplinada pelo Decreto nº 11.428, de 2 de março de 2023, que redefiniu sua estrutura, composição e competências, revogando o Decreto nº 10.044/2019.
Base legal e estrutura: o “organograma” que importa para nós
O Decreto nº 11.428/2023 organiza a Camex em diversos componentes. Para quem está do lado empresarial, três blocos são especialmente relevantes:
- Conselho Estratégico
- Comitê-Executivo de Gestão (Gecex)
- Comitês temáticos (tarifas, defesa comercial, facilitação, investimentos, financiamento e garantias etc.)
O mesmo decreto lista a estrutura da Camex da seguinte forma:
- Conselho Estratégico
- Comitê-Executivo de Gestão
- Conselho Consultivo do Setor Privado
- Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações
- Comitê de Alterações Tarifárias
- Comitê de Defesa Comercial e Interesse Público
- Comitê Nacional de Facilitação de Comércio
- Comitê Nacional de Investimentos
- Ombudsman de Investimentos Diretos
- Ponto de Contato Nacional da OCDE para diretrizes a multinacionais
A Secretaria-Executiva da Camex integra a estrutura do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), o que reforça o viés de política industrial e de inserção externa da economia brasileira.
Para gestores, isso significa que decisões que mexem com a estrutura de custos e incentivos de cadeias globais passam, em grande medida, por esses fóruns.
O que a Camex decide na prática para a nossa empresa
Tarifas de importação, ex-tarifários e “lista Camex”
O Comitê de Alterações Tarifárias (CAT) é o fórum onde se discutem mudanças pontuais na Tarifa Externa Comum (TEC), reduções temporárias e regimes como o ex-tarifário.
A chamada “lista Camex” ou tabela Camex é um instrumento que permite identificar se um produto importado tem similar nacional, com base na NCM e na descrição do produto. Essa análise é central para concessão de reduções de alíquota de importação em regimes como ex-tarifário para bens de capital e bens de informática e telecomunicações.
Em termos de impacto:
- decisões da Camex podem reduzir temporariamente alíquotas, destravando projetos de CAPEX e modernização industrial;
- ou podem elevar tarifas e proteger segmentos da indústria local, afetando a competitividade de cadeias que dependem de insumos importados.
Para supply chain e finanças, acompanhar agendas de consulta pública da Camex relacionadas a NCMs críticas vira um tema de estratégia, não só de compliance.
Defesa comercial e interesse público
O Comitê de Defesa Comercial e Interesse Público (CDEIP) trata de medidas de antidumping, subsídios e salvaguardas, bem como da análise de interesse público sobre essas medidas.
Quando uma investigação de dumping ou subsídios resulta em sobretaxas, a Camex participa da decisão sobre aplicar, modular ou até suspender essas medidas, considerando efeitos sobre indústrias a jusante, inflação e política industrial.
Do ponto de vista de cargos estratégicos, isso significa:
- risco de aumento súbito de custos de insumos importados;
- oportunidade de proteção para segmentos em que somos produtores locais relevantes;
- necessidade de dialogar tecnicamente com associações setoriais, governo e cadeia de valor quando uma investigação afeta diretamente nosso negócio.
Estudos acadêmicos sobre a institucionalidade da política comercial brasileira mostram que a Camex foi criada justamente para coordenar interesses divergentes dentro do Executivo e reduzir decisões fragmentadas em tarifação e defesa comercial.
Financiamento e garantias às exportações
O Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações (CFGE) articula políticas como Seguro de Crédito à Exportação (SCE), Proex e instrumentos de apoio à internacionalização.
Um exemplo recente é a retomada do SCE pós-embarque para micro, pequenas e médias empresas, anunciada no âmbito da Camex para reduzir risco de inadimplência e crises políticas em mercados externos.
Para grandes empresas, linhas de financiamento à exportação e garantias públicas influenciam:
- decisões de prazo de pagamento a clientes externos;
- desenho de políticas de crédito;
- apetite a novos mercados de maior risco político.
Facilitação de comércio, Portal Único e agenda regulatória
O Comitê Nacional de Facilitação de Comércio conecta a Camex com a implementação do Acordo de Facilitação de Comércio da OMC e com o Portal Único de Comércio Exterior.
Estudos da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e análises do governo federal estimam que a plena implementação do Portal Único, com simplificação e integração de processos de importação e exportação, pode aumentar significativamente a corrente de comércio brasileira até 2030–2040, pela redução de prazos e custos.
Se sua operação depende de lead times internacionais competitivos, a agenda de facilitação que passa pela Camex mexe diretamente com estoques, capital de giro e nível de serviço.
Investimentos estrangeiros e ambiente para IDE
O Decreto nº 11.428/2023 incluiu, no escopo da Camex, o Comitê Nacional de Investimentos, o Ombudsman de Investimentos Diretos e o Ponto de Contato Nacional da OCDE.
Mais recentemente, a Camex lançou a plataforma InvestVis, que oferece dados sobre investimentos estrangeiros diretos no mundo, com foco em apoiar decisões de política pública e orientar a iniciativa privada.
Para multinacionais e grandes grupos locais, isso significa que a Camex é um ponto de referência tanto para:
- compreender a estratégia brasileira em atração de IDE e acordos;
- quanto para antecipar mudanças regulatórias que podem afetar nossa posição competitiva em cadeias globais.
O que pesquisas e estudos dizem sobre a Camex
A literatura acadêmica sobre política comercial brasileira mostra que a Camex surgiu como tentativa de coordenar uma agenda fragmentada entre vários ministérios e órgãos. Trabalhos como a dissertação da FGV que avalia a atuação da Camex na formulação e coordenação da política comercial, e artigos publicados em plataformas como SciELO e Redalyc, enfatizam:
- a Camex elevou a coerência da política comercial, reduzindo decisões ad hoc;
- a composição interministerial cria um espaço de negociação entre visões pró-abertura, proteção setorial e política industrial;
- o equilíbrio de forças dentro da Camex varia ao longo do tempo, conforme prioridades de governo e pressões setoriais.
Para gestores, isso reforça um ponto importante: decisões que afetam tarifas, defesa comercial e facilitação não são aleatórias; elas passam por um arranjo institucional relativamente estável, que pode ser monitorado e, em certos casos, influenciado por meio de associações empresariais e conselhos consultivos.
O que mudou com o Decreto 11.428/2023
Em 2023, o governo redefiniu a estrutura da Camex pelo Decreto nº 11.428, revogando o Decreto nº 10.044/2019. Análises de entidades como o Observatório da Indústria da FIERGS e consultorias especializadas em comex destacam alguns efeitos práticos dessa mudança:
- maior integração da Camex ao MDIC, reforçando o vínculo com política industrial;
- reorganização de comitês e criação de instâncias específicas para investimentos e facilitação de comércio;
- clarificação de competências de cada comitê, inclusive no relacionamento com o setor privado.
Na prática, para empresas enterprise, isso significa uma Camex mais claramente posicionada como “orquestradora” da política comercial, conectando tarifas, defesa, facilitação e investimentos em um mesmo desenho.
Exemplo recente: Camex no centro de decisões de retaliação tarifária
Em 2025, a Camex voltou ao noticiário internacional ao ser acionada pelo governo brasileiro para analisar possíveis medidas de retaliação contra tarifas impostas pelos Estados Unidos. Segundo reportagens, a Camex foi encarregada de aplicar uma nova lei de reciprocidade comercial, avaliando contramedidas, inclusive aumento de tarifas sobre produtos norte-americanos.
Esse episódio ilustra como, em cenários de tensão comercial, a Camex se torna o locus de decisões que podem alterar rapidamente:
- a estrutura tarifária para setores específicos;
- a atratividade de mercados;
- o risco regulatório em cadeias globais.
Se você atua em segmentos sensíveis a medidas de retaliação ou preferências tarifárias, acompanhar esse tipo de pauta deixa de ser “assunto macroeconômico distante” e vira tema de planejamento.
Como cargos estratégicos podem usar a Camex a favor do negócio
Do ponto de vista de C-level, diretoria e heads, algumas linhas de ação fazem sentido:
Mapear NCMs críticas e conectá-las à agenda da Camex
Relacionar os principais códigos NCM da nossa cadeia com consultas públicas, ex-tarifários, medidas de defesa comercial e alterações tarifárias em discussão na Camex.
Integrar política comercial ao planejamento de supply chain
Tratar decisões da Camex como cenários de planejamento: “e se a tarifa subir/baixar em X p.p.?”, “e se um ex-tarifário não for renovado?”.
Acompanhar comitês e agendas setoriais
Utilizar associações, câmaras de comércio e conselhos consultivos para ter leitura antecipada das prioridades da Camex e, quando fizer sentido, participar tecnicamente do debate.
Conectar comex, logística e finanças em torno da política comercial
Em vez de tratar decisões da Camex como algo que “chega pronto” para o comex executar, criar rotinas de diálogo entre quem olha custo, risco, margem, pricing e nível de serviço.
Avaliar oportunidades em programas e instrumentos da Camex
Em temas como facilitação, investimentos e financiamento à exportação, há espaço para capturar benefícios diretos, e não apenas mitigar riscos.
Perguntas para levar à próxima reunião de planejamento
Se quisermos trazer a Camex para a conversa estratégica, podemos começar com algumas perguntas simples:
- Quais NCMs da nossa cadeia dependem hoje de ex-tarifário ou de decisões recentes da Camex?
- Qual seria o impacto para margem e competitividade se essas condições mudarem?
- Em quais investigações de defesa comercial a nossa cadeia está direta ou indiretamente exposta?
- Temos alguém responsável por monitorar agendas de Portal Único, facilitação de comércio e OEA, que dialogam com a Camex?
- Estamos utilizando instrumentos de financiamento e garantias à exportação que passam pela órbita da Camex?
Essas perguntas deslocam o tema de “política pública distante” para “variável que mexe na nossa DRE, no nosso balanço e na nossa estratégia de mercados”.
Camex como variável de competitividade, não rodapé regulatório
A Camex é, em essência, a mesa onde o governo brasileiro decide como o país se insere nas regras do jogo do comércio internacional: tarifas, defesa, facilitação, investimentos, financiamento à exportação.
Se continuarmos tratando suas decisões apenas como “resoluções que o jurídico ou o despachante nos avisam depois”, perdemos a chance de antecipar riscos e capturar oportunidades.
Como lideranças de logística, comex, supply chain, finanças e operações, faz cada vez mais sentido incorporar Camex, Portal Único, OEA e agenda de facilitação de comércio ao nosso repertório de planejamento.
Não para virar especialistas em direito público, mas para garantir que as decisões tomadas em Brasília estejam alineadas com a estratégia que estamos desenhando para os próximos anos.
Se as decisões da Camex continuam chegando para nós apenas como “resolução publicada” ou “mudança de alíquota informada pelo fornecedor”, estamos reagindo – não planejando.
Se a sua empresa depende de importação, exportação ou cadeias globais de suprimentos, vale dar o próximo passo: mapear NCMs críticos, avaliar exposição a defesa comercial e conectar política comercial ao planejamento de supply chain e finanças.
Vamos conversar sobre como estruturar essa visão de forma prática, com dados e cenários, e transformar a Camex em parte da sua estratégia – não apenas do seu risco regulatório.